Mónica acorda todos os dias antes da cidade.
Não é que queira, é que o sono já não lhe pertence. O pequeno ainda dorme, com o rosto virado para o luar que atravessa a janela do bairro antigo, um reflexo do tempo suspenso.
Sai de casa e caminha pelas ruas frias de Outubro, o avental dobrado no braço, como se carregasse a sua própria cruz. A Faculdade já acorda com os passos dos que esperam o café, e o cheiro a pão quente mistura-se com o rumor dos ventiladores e das vozes apressadas.
Atrás do balcão, Mónica é uma sombra que serve arroz e desdém.
Os estudantes riem, falam alto, pedem mais salada.
Ela responde sempre o mesmo, num tom que não se distingue bem entre ironia e mágoa:
“Eu também queria muita coisa.”
Quem a ouve pensa que é rude. Mas rude é o mundo, que a fez ficar ali, entre panelas e tabuleiros, quando sonhava desenhar pontes e casas com o nome gravado nelas.
Ganha o que dá para pagar o quarto e as fraldas do filho — pouco mais de mil e cem euros por mês, quando o mês é generoso. Nada de férias, nada de sonhos.
Aqueles que se juntam ao sindicato parecem-lhe ingénuos, como quem acredita que as flores crescem no cimento. Ela já se tatuou toda, marcou o corpo porque não podia mudar a alma. Desde que soube do sofrimento do filho, quis parecer forte, mas a força nela confundia-se com dureza.
Culpa todos — o país, o governo, o rosto cansado de Marcelo Rebelo de Sousa, que ela insulta quando está sozinha.
Sente que o mundo é feito para outros.
Os estudantes estrangeiros que passam no balcão são espelhos do que ela nunca foi: livre.
E ela retruca, amarga, tentando com as palavras ferir o que a incomoda.
Um dia, um estudante elogia-lhe o cabelo.
Ela sorri por um instante, o riso de quem esquece a mágoa, mas logo o corrige com crueldade.
“Nunca confies em quem te dá flores, rapaz”, diz-lhe, com a mágoa antiga de quem já foi enganada por um gesto bonito.
Nos dias seguintes, ele insiste. Deixa-lhe flores verdadeiras, pequenas flores apanhadas junto ao Cubo.
Mónica, num impulso, atira-as ao chão, pisa-as com raiva, como quem destrói a própria esperança.
Mas quando ele pergunta, com doçura, “não te lembras de mim?”, o coração dela tropeça por dentro.
Há palavras que ficam suspensas no ar, e essa ficou — redonda, estranha, a ecoar dias inteiros.
Segue-o num fim de tarde.
Vê-o ajudar um velho a subir as escadas.
A vida parece-lhe, de repente, uma coisa simples e boa, como não lembrava que fosse.
Quando finalmente o confronta, ele fala-lhe de uma noite antiga — a queima das fitas —, uma noite que ela passou a tentar esquecer.
Conta que ama desde então uma mulher que acredita ter perdido, e que esperava encontrá-la por acaso, um dia, entre as vozes e as filas.
Era ela.
E quando o soube, Mónica chorou como quem se reencontra com algo que julgava morto.
O filho, o medo, o ódio — tudo se dissolveu, como neve ao sol.
Passaram-se meses, e agora, quem a vê de novo na FAUL quase não a reconhece.
Voltou a estudar. Sorri quando almoça no refeitório onde trabalhou, fala pouco, mas a sua alma já não se dobra.
Vai com ele para a Holanda, onde o filho poderá ter o cuidado que aqui o mundo não soube dar.
Mónica aprendeu, sem poemas, o que eu sempre soube:
a vida só dói quando se esquece que é feita de coisas simples.
O amor de um gesto.
O silêncio da tarde.
A certeza de que, mesmo depois de tudo, ainda há flores que nascem no asfalto.
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