As texturas e marcas do tempo nas portas de uma cidade são fascinantes. Que tipo de carros estarão estacionados por detrás deste portão?

Em Alcântara, entre restos de armazéns industriais, esconde-se o último laboratório de Erasmus Vóltar, cientista caído em desgraça. Outrora respeitado físico teórico, foi ridicularizado por propor meios de locomoção baseados em microburacos negros, criados e estabilizados em câmara de vácuo profundo. O seu tratado Gravitões Montáveis e Buracos Negros Domésticos foi descartado como pseudociência.
Expulso da academia, refugiou-se entre os estaleiros abandonados junto à linha do Tejo. Ninguém reparava naquela porta azul, comida pela ferrugem e com um letreiro ameaçando reboque. Mas por detrás dela, Vóltar construía algo inimaginável.
O seu laboratório, blindado com chumbo e antimónio, continha uma câmara de vácuo multi-camada onde Erasmus conseguira o impensável: isolar singularidades do tamanho de alfinetes — “gotas do infinito”. Suspensas por campos de contenção, estas fontes de energia distorciam o espaço à sua volta. Eram instáveis, perigosas, mas poderosas.
O primeiro veículo, o Buraco Móvel I, levitava com dificuldade, tremendo como se tivesse febre. Mas funcionava. Depois veio a Gravitoneta, com cúpula de vidro vulcânico e comandos giroscópicos. Erasmus vislumbrava um mundo movido sem combustíveis fósseis, sem atrito, apenas curvando o espaço.
Mas boatos surgiram. Um miúdo contou ter visto uma bicicleta flutuar. Um vigilante noturno falou de “uma sombra que caiu para cima”. A Divisão de Anomalias Tecnológicas chegou disfarçada. Bateram à porta 5 com fardas da câmara municipal.
Erasmus sabia. Acionou o Protocolo Orfeu. Escondeu os veículos principais em túneis abandonados da antiga estação de Alcântara-Mar, salvou o cilindro com os seus dados e deixou apenas um protótipo para ser apreendido.
Foi levado, interrogado, considerado apenas um velho com delírios de grandeza. Não encontraram provas. Devolveram-no ao mundo, desprovido do seu laboratório. Mas já era tarde. Erasmus escapara dias antes com a Gravitoneta II, cruzando o Tejo invisível ao radar.
Nos meses seguintes, pastores na Arrábida e pescadores em Sesimbra relataram objetos silenciosos. Erasmus organizou os Filhos da Gravidade, uma rede subterrânea de engenheiros e sonhadores. Fundaram um hangar nas Berlengas, camuflado sob as rochas.
Lá, os veículos evoluíram: o Silêncio, que desaparecia ao mover-se; o Espiral IX, que dobrava tempo em breves instantes. Erasmus envelhecia, mas antes de partir, confiou os planos a Leonor, a sua aprendiz.
Leonor voltou a Alcântara e, durante a noite, escondeu o cilindro de tungsténio entre as tábuas da porta número 5. Ninguém suspeitaria.
Hoje, a porta continua lá, ignorada entre bares e startups. A tinta azul escama-se como pele antiga. Mas por dentro, entre a madeira podre e o ferro corroído, dorme o segredo de uma nova física. Erasmus morreu, mas o futuro continua estacionado ali.
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