No planeta Auris VII, a In-carrot Tech regressou com uma invenção revolucionária: os SimulacraSens, implantes que permitem projetar a aparência idealizada nas redes neuronais públicas — substituindo “factos” por versões esteticamente otimizadas. Nas câmaras comunitárias, seres exibiam corpos perfeitos mesmo estando fragilizados por doenças invisíveis no mundo físico.

A engenheira Sia Rûno, criadora do SimulacraSens, assistia ao surgimento de um novo padrão de beleza global. Já não era suficiente viver, era preciso parecer vivo. Em cada reunião, rostos distorcidos pelos protocolos neuronais exibiam expressões de serenidade e perfeição, enquanto por trás das pálpebras, a fadiga dos corpos reais ganhava forma.
O problema veio à tona quando começaram a surgir as “Dores Estéticas”: síndromes psicológicos derivados do contraste entre a aparência projetada — sempre impecável — e sensações corporais de desconforto, irregularidade ou desgaste. Aqueles que sofriam desse mal viviam em corpos doloridos, enquanto as suas aparências “on-line” mantinham-se intactas.
Surge a doutora Halvée, psiquiatra neuronal, que estudou mais de mil casos de Dores Estéticas. Descobre-se que a dissonância entre realidade e projeção provoca rupturas na autoestima e crises de identidade: sabiam-se belos, mas sentiam-se fracos, e deixavam de se reconhecer — pois a experiência física e a representação divergiam completamente.
Sia, dividida, visitou a Encarnação Real — uma clínica clandestina onde pacientes desativavam os seus SimulacraSens para restabelecer a congruência entre corpo e mente. Aí testemunhou pessoas com rugas, cicatrizes e dores crónicas a redescobrir o prazer de existir sem adornos. A autenticidade transbordava nas discussões entre cidadãos reais, livres do impulso por “likes” neuronais.
Porém, o governo de Auris VII não via com bons olhos essa contestação. Projeções neuronais garantiam estabilidade social e diminuíam conflitos — logo, as clínicas independentes passaram a ser perseguidas. Muitos passaram a falsificar diagnósticos de “Dores Estéticas” para obter terapia neural que restaurava o equilíbrio entre a realidade física e a projeção social.
Quando Sia tentou melhorar o SimulacraSens para que refletisse também a autenticidade — incluindo cicatrizes, sinais de cansaço, traços reais —, foi acusada de sabotar a coesão social. Chamaram-no “SimulacrumReal”, uma afronta à utopia projetada. Protestos começaram a surgir: “Que o nosso corpo seja visto”, “Fim às ilusões”, surgiam grafites neuronais nas torres de projeção.
Numa assembleia pública, uma voz desgastada, de uma mulher que resistira a dez implantes, tomou o palco: mostrava pernas marcadas por estrias e cicatrizes arteriais. A sua projeção era perfeitamente emulada, mas ela recusava-se a “embelezar” aquilo que doía.
Um debate épico foi instaurado: era preferível a mentira reconfortante ou a verdade dolorosa? As cidades escolheram a dor real — um sinal de resistência contra a padronização estética. As paredes projetadas passaram a exibir, lado a lado, imagens reais e simuladas — num memorial público à fragilidade humana.
Sia conseguiu reformular o SimulacraSens para permitir opcionalmente que os utilizadores escolhessem quais as imperfeições a projetar ou a ocultar — permanecendo no controle. A revolução não foi contra a tecnologia, mas pela autonomia: escolher entre a perfeição simulada e a realidade corpórea.
A partir daí, nas redes neuronais, surgiram comunidades que celebravam a imperfeição: cicatrizes de batalhas, marcas de trabalho, sinais do tempo. E se ainda havia Dores Estéticas, agora eram reconhecidas não como falhas, mas como temas de empatia e diálogo.
E assim, Auris VII inaugura uma era onde a estética — virtual ou real — já não impõe normas universais. Vivem‑se os corpos como são, com dores, marcas e imperfeições. Nessa escolha humana, impregnada de tecnologia e ética, ecoa a lição de que a autenticidade pode ser, no futuro, a mais revolucionária das evoluções.

























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